segunda-feira, 26 de maio de 2014

. John Rawls segundo Michael Sandel


. John Rawls e a teoria da justiça social


John Ralws é um filósofo norte americano, falecido em 2004, cuja teoria sobre o Estado assenta no conceito de Justiça Social, como o corpo na coluna vertebral. Em termos gerais, opõe-se ao utilitarismo no domínio da política. Isto é, considera que não há bem estar comum que justifique o sacrifício das liberdades fundamentais. Condenando tanto o liberalismo selvagem, que sacrifica os menos favorecidos em nome da eficácia económica, como o socialismo autoritário, que sacrifica os mais favorecidos em nome de uma igualdade artificial. Tentou, por isso, conciliar a ideia de liberdade com a de igualdade, sem prejuízo de nenhuma, assim como defendeu que os direitos das pessoas derivam dos princípios de uma sociedade justa: o princípio da igualdade de oportunidades, princípio da liberdade igual e princípio da diferença.

Igualdade de oportunidades: trata-se de um princípio básico de justiça social segundo o qual o acesso às posições sociais mais valorizadas deve estar garantido a todos independentemente das condições económicas de cada um. Dito de outro modo: quem não tem recursos económicos suficientes deve ser apoiado pelo Estado, de modo a que o seu sucesso dependa única e exclusivamente do seu empenho pessoal e não de quaiquer critérios menos evidentes. Numa palavra, o mérito deve ser o critério.

Liberdade Igual: cada pessoa deve ter o máximo de liberdade (civil) que seja compatível com igual grau de liberdade para todos os outros. Isto quer dizer que não haverá sociedade justa se as liberdades básicas - liberdade de expressão, de voto, à propriedade privada - não estiverem garantidas para todos de igual modo.

Princípio da diferença: segundo este princípio, aqueles que foram brindados com um talento natural que os tornou ricos devem auxiliar os que a natureza não brindou. Nesse sentido, a riqueza deve ser distribuída de forma igualitária, com exceção para os casos em que as desigualdades beneficiem os menos favorecidos (exemplo do médico). No que diz respeito à propriedade, o Estado deve implementar medidas de modo a fazer pagar mais a quem tem mais (exemplo dos impostos).

Em conjunto, constituem os três princípios que qualquer sujeito racional adotaria antes de saber a sua posição social e a parte das faculdades naturais que lhe cabe. É isso que John Rawls quer dizer quando usa a expressão "tomada de decisão sob um véu de ignorância", para que a imparcialidade seja garantida.

domingo, 25 de maio de 2014

. Thomas Hobbes e John Locke

. John Locke segundo Fernando Savater

. O contratualismo de John Locke


John Locke (1632-1704), tal como Hobbes, é contratualista. Isto é, para este filósofo, considerado o pai do liberalismo político, o Estado também deve ser entendido como uma construção humana que vem responder à complexificação das relações socias. Há, no entanto, algumas diferenças fundamentais:
1. Ao contrário de Thomas Hobbes, John Locke estava convencido de que o estado de natureza não era um estado de guerra generalizada de todos contra todos. Ou seja, ainda que alguns tentem sobrepor a sua vontade à vontade dos outros, a verdade é que o homem não é naturalmente mau. Isto é, mesmo sem poder político e em nome do seu próprio interesse, os seres humanos têm consciência moral, o que os leva a distinguir naturalmente o bem e o mal, assim como a respeitar os direitos naturais reconhecidos por todos: o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à propriedade.
2. O Estado justifica-se porque nem sempre somos suficientemente fortes para fazer respeitar os direitos naturais e não porque ninguém os respeita. Isto é, uma vez que haverá sempre quem põe os direitos naturais em risco, daí que John Locke fale de guerra de alguns contra alguns e não de todos contra todos, é necessário criar instituições - governo, tribunais, polícia - capazes de garantir o respeito por esses mesmos direitos.
3. O contrato social não consiste numa renúncia aos direitos fundamentais como propunha Hobbes, mas na renúncia à possibilidade de fazer justiça pelas próprias mãos. Ou seja, para evitar o recurso à violência, os cidadão elegem instituições imparcias em quem delegam o poder de gerir equitativamente - igual para todos - os conflitos sociais.
4. Ao contrário de Hobbes, o poder não está concentrado nas mãos de um soberano, seja ele um homem ou parlamento, mas distribuído por instituições específicas e independentes entre si. Daí que Locke fale em divisão tripartida dos poderes - legislativo, executivo e judicial -, de modo a evitar os abusos de poder.
5. As instituições políticas não têm poderes ilimitados, também elas estão sujeitas à lei que representam e fazem executar. Mais: se as instituições não respeitarem os direitos fundamentais, afinal a sua razão de ser, os cidadãos poderão recorrer à resistência e à desobediência civil. Em última análise, promover a substituição dos titulares dos cargos de poder, tal como acontece hoje em dia nas democracias modernas com recurso a eleições.

. Thomas Hobbes segundo Fernado Savater


. O contratualismo de Thomas Hobbes


Ao contrário de Aristóteles, para quem o Estado era a expressão direta da natureza política do ser humano, Thomas Hobbes (1588-1679) defende que o Estado é uma construção, isto é, uma instituição artificial que se justifica a partir de dado momento da vida em sociedade. Quais as razões que levaram os homens a organizar-se politicamente, é o que veremos de seguida.
Segundo Thomas Hobbes, o ser humano tem uma natureza egoísta e estaria condenado a viver em guerra permanente de todos contra todos - bellum omnium contra omnes -. Ou seja, antes da instituição do Estado Político, que vem ordenar a vida social, o homem vive num estado de natureza em que todos se julgam com direito a tudo. Uma condição caótica, portanto, de conflito generalizado e em que imperaria a lei do mais forte: o homem é o lobo do homem - homo homini lupus -.
Com a complexificação da vida social e sem quaisquer garantias de paz e segurança, os seres humanos viram-se então na necessidade de celebrar um contrato cujos termos garantissem a estabilidade desejada. A esse contrato deu-se o nome de contrato social. Um contrato celebrado pelos cidadãos entre si em que cada um se compromete a renunciar aos seus direitos, que são transferidos de forma incondicional e irrevogável para as mãos do soberano. O soberano - um homem ou um conjunto de homens -, por sua vez, tratará de garantir o direito à vida constantemente ameaçado no estado de natureza. Dito de outro modo: confrontados com a instabilidade generalizada, os seres humanos, agora convertidos em cidadãos, transferem os seus direitos para as mãos de um soberano que sem quaisquer outros limites se encarrega de garantir a paz e a segurança desejadas. Um pau de dois bicos, portanto.
Por um lado, o direito à vida fica salvaguardado, essa é a única obrigação do soberano. Por outro, exatamente por não estar obrigado a mais nada, isto é, por ter poderes absolutos, o soberano está acima da lei, que impõe sem qualquer contestação possível. Daí que o soberano seja apelidado de Leviatã, o mostro marinho da mitologia, e o seu corpo seja alimentado pela acumulação dos cidadãos anónimos que assim são devorados pela terrível criatura. Ou seja, a preocupação com a segurança, talvez excessiva, deixa os cidadãos completamente à mercê do soberano, que legisla e executa as leis sem que tenha de dar qualquer justificação.
Embora te pareça distante no tempo e improvável no estado a que chegaram as democracias atuais, a verdade é que continua a ser importante estudar a proposta de Thomas Hobbes. Desde logo porque ainda existem estados totalitários, como acontece com a Coreia do Norte, onde sob o mesmo pretexto da segurança os cidadãos se vêm convertidos em elementos de uma mesma massa uniforme sem acesso a alguns dos direitos fundamentais: a liberdade de pensamento e expressão, o direito à diferença, à indignação... Depois, porque mesmo em democracia, em relação à qual ninguém te pediu opinião - o contrato social está implícito, tácito, quando nasces já fazes parte do sistema -, existem perigos semelhantes: é verdade que as liberdades fundamentais estão garantidas, pelo menos teoricamente, mas não é menos verdade que há sempre interesses instalados empenhados em manipular-te e levar-te a pensar de um modo que proteja esses mesmos interesses. Chomsky, um filósofo particularmente atento ao modo como o mundo está organizado, uma vez confrontado com a letra de Redemption Song de Bob Marley, que ouviste nas aulas e poderás reapreciar de seguida na versão de Matisyahu, é bastante claro em relação a isso mesmo: Eu devia conhecer essa canção. Quando as pessoas quiseram tanta liberdade que deixaram de poder ser escravizadas, assassinadas ou reprimidas, desenvolveram-se naturalmente novas formas de controlo, para tentar impor formas de escravidão mental, a fim de que aceitassem um enquadramento de doutrinação e não questionassem o que quer que fosse. Quando se consegue que as pessoas não percebam e deixem de questionar doutrinas tão cruciais, elas estão escravizadas. Irão seguir ordens como se estivessem diante de uma arma apontada.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

. A política de Aristóteles

. Aristóteles e a justificação naturalista do Estado


Aristóteles (384-322 a. C.), que também foi mestre de Alexandre Magno, coloca o problema da justificação do Estado num livro intitulado Política. Neste livro, Aristóteles estuda os fundamentos e a organização da cidade (polis, em grego, que deu origem ao termo «política»). Naquele tempo, as principais cidades gregas eram estados independentes – tinham os seus próprios governos e exércitos, além de leis e tribunais próprios. Por isso se chamam cidades-estado. Assim, ao falar da origem da cidade, Aristóteles está a falar da origem do estado. Aristóteles defende que a cidade-estado existe por natureza. Os seres humanos sempre procuraram viver sob um estado porque a vida fora do estado é simplesmente impensável. Viver numa sociedade governada pelo poder político faz parte da natureza humana. Quem conseguir viver à margem da cidade-estado não é um ser humano: «é uma besta ou um deus», diz Aristóteles. Por isso se diz que a sua teoria da origem e justificação do estado é naturalista.

O argumento central de Aristóteles é o seguinte:
Faz parte da natureza dos seres humanos desenvolver as suas faculdades.
Essas faculdades só poderão ser plenamente desenvolvidas vivendo no seio de uma comunidade (cidade-estado).
Logo, faz parte da natureza humana viver na cidade-estado.

Fora da cidade-estado seríamos incapazes de desenvolver a nossa natureza. Isso torna-se claro, pensa Aristóteles, quando verificamos que os seres humanos não se limitaram a formar pares de macho e fêmea para procriar, ao contrário dos outros animais. Constituíram também comunidades de famílias (as aldeias) e estabeleceram a divisão entre governantes e súbditos, com vista à auto-preservação.
A comunidade mais completa, que contém todas as outras, é a cidade-estado. Esta é auto-suficiente e não existe apenas para preservar a vida, mas para assegurar a vida boa, que é o desejo de todos os seres racionais. É por isso que a cidade-estado é a comunidade mais perfeita e todas as outras comunidades de seres humanos têm tendência para se tornarem estados. Ou seja, a finalidade de todas as comunidades é tornarem-se estados. Este argumento relaciona-se com uma ideia muito importante para Aristóteles: que a natureza de uma coisa é a sua finalidade, aquilo para que tende.
Assim, a finalidade dos seres humanos é viver na cidade-estado porque ao estudarmos a origem destas verificamos que há um impulso natural dos seres humanos para passar da vida em família para a vida em pequenas comunidades de lares, e destas para a comunidade mais alargada e auto-suficiente da cidade-estado. Daí Aristóteles afirmar que «o homem é, por natureza, um animal político», isto é, não há realmente seres humanos isolados da comunidade. Alguém que viva fora da sociedade sem estado não chega a ser um ser humano (é uma besta) ou é mais do que um ser humano (é um deus).

domingo, 18 de maio de 2014

. O problema da justificação do Estado


Quando nasceste, os teus pais tiveram que registar-te. Cresceste, e foram obrigados a mandar-te para a escola. Agora, uma vez ultrapassada a barreira dos dezasseis anos, também tu terás de obedecer à autoridade em nome próprio. Caso não o faças, segundo a lei portuguesa, poderás ser responsabilizado criminalmente. Tudo isto sem que alguma vez te tenham perguntado se concordavas com o sistema em que desde cedo foste incluído. Será isso legítimo? Por que razão está a sociedade organizada deste modo? Este é o problema da justificação do Estado.
O problema da justificação do Estado foi um problema colocado desde muito cedo e por diversos filósofos com posições igualmente diversas. Ainda assim, podemos dividir essas posições em dois grandes grupos: a proposta naturalista e as proposta contratualista. A primeira vai no sentido de mostrar que o ser humano nasceu para isso mesmo, para viver em sociedades politicamente organizadas, que é essa a sua natureza. A segunda defende que a complexificação da vida em grupo levou os seres humanos, a dado momento e por razões várias, a estabelecer um contrato que os obriga às regras aí consignadas. Como exemplo da primeira proposta temos a posição de Aristóteles, de quem já ouviste falar por ter sido discípulo de Platão. Como exemplo da segunda, entre outros pensadores modernos, temos as posições de Thomas Hobbes e de John Locke. Analisar essas propostas e discutir as diferenças entre cada uma delas, é o que faremos de seguida.

domingo, 16 de março de 2014

. Ética aplicada: o caso da eutanásia


Identificação do problema
Imagina que conheces alguém em grande sofrimento e sem perspectivas de viver uma vida que valha a pena. Será moralmente aceitável ajudá-lo a morrer? No caso de uma pessoa muito velha ou um doente crónico, por exemplo, será moralmente aceitável desligar a máquina de apoio à vida ou administrar uma droga letal? Numa palavra, até que ponto podemos falar de morte misericordiosa? Como mostrarei de seguida, esta é uma questão que sugere respostas distintas consoante a teoria ética que adoptarmos. Antes disso, porém, é necessário estabelecer a distinção entre diferentes tipos de eutanásia:
- falamos em eutanásia voluntária quando o paciente deseja morrer e expressa o seu desejo, trata-se de uma espécie de suicídio assistido já praticado legalmente na Suiça e na Holanda;
- a eutanásia involuntária dá-se quando o paciente não deseja morrer e o seu desejo é ignorado. Em muitos casos equivale a assassínio;
- a eutanásia não voluntária corresponde à situação em que o paciente não está consciente ou em condições de exprimir o seu desejo;

Discussão do problema: a eutanásia voluntária
Um cristão, cuja ética se baseia na ideia de dever, terá muitas dúvidas em relação à justificação moral da eutanásia voluntária, uma vez que contraria o mandamento “Não matarás!”. No entanto, poderá existir um certo conflito entre este mandamento e o do Novo Testamento que manda amar o próximo: ajudar a morrer uma pessoa que pede ajuda nesse sentido pode ser visto como uma forma de amor pelo próximo, daí chamar-se a este tipo de eutanásia “morte misericordiosa”.
Um Kantiano, isto é, alguém que considera a humanidade como um fim em si mesmo e que se recusa a tratar as pessoas como um meio, poderá viver um conflito semelhante. Por um lado, tem o dever de nunca matar, uma vez que estaria a tratar a pessoa como um meio para obter um fim, neste caso o fim do seu sofrimento. Por outro, é possível encarar a morte misericordiosa como um fim em si mesmo, se for isso que o doente quiser e precisar de ajuda.
Um utilitarista, isto é, alguém que decide em função das consequências da acção, e não em função de deveres pré-estabelecidos, pensaria de forma muito diferente. A acção correcta será aquela que causar a maior felicidade ao maior número, pelo menos mais felicidade do que infelicidade. Se se verificar que ajudando alguém a morrer, sobretudo se o prazo de vida não for longo, se termina com o seu sofrimento, além do da família, a eutanásia tem justificação: não trará felicidade, mas traz menos infelicidade.

 Efeitos secundários da eutanásia
A morte do paciente por eutanásia pode implicar a violação da lei – pense-se nos casos de Ramon Sampedro em Espanha e das mais recentes recusas nos tribunais franceses -, de forma que a pessoa que ajudar o paciente a morrer corre o risco de ser condenado. Colocando-se outra questão ética: até que ponto poderá a violação da lei ser moralmente aceite? Casos como os de Aristides Sousa Mendes, entre outros herois anónimos que não hesitaram em desafiar a autoridade para proteger seres humanos indefesos, são exemplo disso mesmo.
Outro efeito secundário da prática da eutanásia é a possibilidade de facilitar a vida aos médicos sem escrúpulos que matam pacientes fingindo que estão a cumprir o seu desejo. Ou seja, a legalização da eutanásia voluntária poderá facilitar a vida a quem quiser implantar uma política de eutanásia involuntária.

Esboço de uma reflexão crítica
A questão da eutanásia, como a maioria das questões éticas, não é fácil. É verdade que podemos socorrer-nos desta ou daquela teoria para justificar as nossas decisões. Porém, e em última análise, a decisão dependerá sempre de nós, do nosso livre arbítrio.
A questão ética poderá ser atenuada se a lei de cada país enquadrar a prática, que afinal é muito antiga e continuará a ser silenciosamente praticada. Casos como os da Suiça e da Holanda poderão constituir uma boa referência para os legisladores de todo o mundo, enquadrando o fenómeno e estabelecendo as fronteiras entre o que é um suicídio assistido, eutanásia voluntária, e um potencial homicídio, no caso de confundirmos aquela com a eutanásia involuntária.
Pelas razões anteriores, e não só, justificam-se todas as discussões em torno do problema, sendo que mais tarde ou mais cedo seremos politicamente confrontados com a questão, quem sabe com um referendo, onde seremos chamados a escolher entre a moralidade cega e o direito a uma morte com dignidade, tal como dizia Ramon Sampedro.

domingo, 9 de março de 2014

. Ética 5: críticas ao utilitarismo


Embora pareça uma teoria apelativa, a verdade é que não é fácil pôr em prática os princípios do utilitarismo.
A primeira dificuldade que se levanta está relacionada com a impossibilidade de medirmos a felicidade. Pessoas diferentes sentem-se felizes por razões diferentes, o que torna a tarefa de estabelecer uma ideia de felicidade comum particularmente difícil. Como comparar, por exemplo, a felicidade experimentada por um adepto de futebol quando a sua equipa marca um golo fabuloso e a de um jovem casal que acaba de ter o seu primeiro filho? E a felicidade experimentada nestes dois casos com o prazer que sentimos quando comemos o nosso prato favorito? Será que estamos a falar da mesma felicidade? Enfim, como calcular a felicidade?
Em relação a esta questão, Stuart Mill propôs que se distinguissem dois tipos de prazer, os elevados e os mais baixos. Os primeiros seriam os prazeres intelectuais. A felicidade sentida, por exemplo, quando lemos um livro de que gostamos muito ou ouvimos a nossa música favorita. Os segundos seriam os prazeres físicos, mais básicos, como acontece quando comemos um gelado ou bebemos um sumo deliciosos numa tarde quente de verão. Uma divisão um pouco elitista, uma vez que resulta das suas preferências particulares e dos interesses da sua classe social. Ou seja, a dificuldade permanece, não é fácil comparar a felicidade experimentada por pessoas diferentes em circunstâncias distintas.
Outra objeção ao utilitarismo tem a ver com o facto de este permitir justificar muitas ações habitualmente consideradas imorais. A pena de morte, por exemplo. Há países que mantêm esta pena por estarem convencidos de que desta maneira vão diminuir a taxa de crimes violentos, isto é, que o bem comum resultante da sua aplicação é muito maior do que o sofrimento particular do condenado e dos seus familiares.
Para lá das críticas anteriores, o utilitarismo parece justificar algumas ações verdadeiramente absurdas. Uma vez que o princípio é a felicidade global, somos levados a crer que seria preferível viver num estado de felicidade artificial - se um cientista inventasse uma substância que nos mantém constantemente felizes - do que num mundo em que somos obrigados a ponderar e a tomar as nossas decisões.
Outro caso difícil tem a ver com a importância que damos à nossa palavra. Para Kant, devemos manter as nossas promessas independentemente das consequências, trata-se de um princípio categórico, é uma questão de integridade e dignidade. Para um utilitarista, por sua vez, manter a palavra é um bem relativo. Por exemplo, um utilitarista não desconsideraria a possibilidade de não pagar uma dívida, se o credor se tivesse esquecido e fosse muito rico. Neste caso, a felicidade do devedor seria maior do que a infelicidade do credor, sobretudo porque o dinheiro não lhe faria muita falta.
Por último, e talvez seja esta a crítica mais importante, é muito difícil prever as verdadeiras consequências das nossas ações. Um pai que bate no filho quando este comete uma asneira poderá fazê-lo porque está convencido de que assim evitará situações potencialmente perigosas. A verdade, porém, é que nunca poderá ter a certeza se os benefícios imediatos da sua ação serão maiores do que a possibilidade de estar a interferir a médio e longo prazo no desenvolvimento emocional da criança. Traumatizando-a, por exemplo.


quarta-feira, 5 de março de 2014

. Ética 4: o utilitarismo de Stuart Mill


Ao contrário de Kant, Stuart Mill (1806-1873) é consequencialista. Isto significa que para este filósofo as ações são avaliadas em função das consequências que geram. Dito de outro modo: podemos considerar uma ação boa porque o resultado dessa ação é desejável e não porque se baseia numa intenção boa. Por exemplo, Kant afirmaria que mentir é sempre errado, em qualquer circunstância e independentemente das consequências, uma vez que a mentira se opõe ao nosso dever de dizer sempre a verdade. Stuart Mill, por sua vez, entende que alguns fins justificam os meios, ou seja, mentir não é uma ação errada em si mesma, sobretudo se com isso evitarmos um mal maior.
A teoria de Stuart Mill, inspirada em Jeremy Bentham (1748-1832), tem o nome de utilitarismo e baseia-se no pressuposto de que o grande objetivo da ação humana é a felicidade. Segundo esta perspetiva, uma ação boa é aquela que gerar a maior felicidade possível para o maior número de pessoas possível. Ou, pelo menos, mais felicidade do que infelicidade. Este princípio ficou conhecido como o princípio da maior felicidade possível ou princípio da utilidade. Isto quer dizer que para um utilitarista a boa ação pode ser calculada examinando as consequências prováveis dos vários cursos possíveis de ação. O que nem sempre é fácil, como veremos de seguida.



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

. Ética 3: críticas à ética kantiana


A crítica mais comum vai no sentido de considerar a ética kantiana demasiado formal, sobretudo o princípio da universalizabilidade. Isto é, kant não nos ajuda muito nos momentos de decisão efetiva, apenas nos dá um enquadramento muito geral, uma maneira de pensar. Imaginem como seria, por exemplo, se tivéssemos que formular mentalmente o imperativo categórico sempre que se trata de decidir. Pois é, o mais certo é que o momento deixasse de ser oportuno e a decisão de fazer sentido. Numa palavra, a ética kantiana é vazia. Quando aquilo que precisamos, na maioria das vezes, é indicações precisas e materiais que nos orientem nas decisões. É verdade que esta crítica negligencia, isto é, ignora, a segunda formulação do imperativo categórico segundo o qual devemos tratar os outros como um fim e nunca como um meio. Uma formulação menos vaga, de facto, com algum conteúdo. Ainda assim, a ética kantiana não nos ajuda em muitas questões morais, como quando somos confrontados, por exemplo, com uma situação de conflito de deveres. Uma vez que apenas nos diz para seguir o nosso dever, como vamos agir quando somos obrigados a decidir entre dois deveres que se opõem? Imagina, por exemplo, que vives numa ditadura e um dos teus melhores amigos pertence à resistência. Imagina também que a polícia secreta, tendo descoberto a atividade do teu amigo, te faz uma visita surpresa e te pergunta onde se encontra ele. Que farias nessa situação? Contavas a verdade e condenavas o teu amigo à prisão? Ou mentias-lhes para proteger o teu amigo, arriscando a tua própria liberdade? Verdade ou amizade? Pois é, por estranho que pareça Kant não nos ajuda nestas situações, também conhecidas por dilemas éticos. Antígona, na literatura clássica, e Aristides Sousa Mendes, na realidade, são ótimos exemplos de alguém que viveu dilemas particularmente difíceis. Aproveita as férias para conhecer as respetivas histórias!
Outra crítica recorrente tem a ver com o facto de ser logicamente possível universalizar máximas que nada têm a ver com a moral -amorais- e até imorais. Por exemplo, nada me impede de universalizar a máxima "Pisca o olho sempre que te cruzares com uma pessoa do sexo oposto ao teu", mas isso nada tem a ver com a moral, é amoral. Assim como poderia universalizar consistentemente a máxima "Maltrata qualquer pessoa que te estorve". Uma crítica demasiado radical , no entanto, uma vez que ignora, mais uma vez, a segunda versão do imperativo categórico. Maltratar alguém que nos estorva dificilmente será tratar as pessoas como um fim em si mesmo.
A teoria é igualmente criticada pela importância que dá aos sentimentos. É verdade que Kant substima os sentimentos porque os sentimentos jamais garantiriam a universalidade que pretende. São eles que nos distinguem uns dos outros, ninguém sente da mesma maneira, e Kant está interessado numa moral que valha de igual modo para todos, que por isso só pode estar fundada na razão. Ainda assim, podemos considerar a sua visão excessiva. Sentimentos como a compaixão, a simpatia e o remorso dificilmente poderão ser considerados amorais, como kant sugere. Pelo contrário, há muitas pessoas que entendem que esses sentimentos, entre outros, estão na base de ações genuinamente morais.
Por último, a teoria kantiana é criticada porque não dá importância nenhuma às consequências da ação. O que significa que idiotas bem intencionados, incompetentes e outros negligentes que, involuntariamente, causem dano a outros, podem ser inocentes à luz da teoria kantiana: as consequências não foram as melhores, mas como não era essa a intenção... Se também pensas assim, se consideras que as consequências devem ser tidas em conta quando se trata de avaliar uma ação, isso significa que talvez sejas consequencialista, como Stuart Mill. Lê as publicações que se seguem e tira as tuas conclusões.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

. Ética 2 : o formalismo kantiano


Segundo Kant, uma ação é verdadeiramente boa quando assenta numa intenção igualmente boa. A intenção é boa quando é pura, isto é, quando expressa uma vontade de fazer o bem pelo bem, porque esse é o nosso dever, independentemente das consequências que daí possam advir.
Fazer o bem porque isso nos põe a bem com a nossa consciência, porque alimentamos o desejo de ser recompensados por isso, ou porque simplesmente me comovo perante a desigualdade e a injustiça, ainda que boas, não são ações verdadeiramente boas. E isto por uma razão muito simples: a ação boa não deve ser motivada por razões externas, mas porque esse é o nosso dever.
Quando agimos segundo uma razão exterior, por exemplo, quando fazemos doações a instituições de solidariedade social porque teremos benefícios fiscais, ou quando dou esmola porque me comovo, estamos a ser determinados heteronomamente, isto é, por fatores externos à vontade. No primeiro caso pela ideia de recompensa, no segundo pelo sentimento de compaixão. Ainda que não estejamos perante ações más, pelo contrário, Kant não as considera verdadeiramente boas porque não são a expressão de uma vontade autónoma, mas heterónoma. Dito de outro modo: devemos agir bem porque percebemos autonomamente que esse é o nosso dever e não porque heteronomamnete somos impelidos a fazê-lo. Ou seja, para sabermos se alguém está a agir moralmente temos de saber se a sua intenção é cumprir incondicionalmente o seu dever. Não é suficiente saber, por exemplo, se o Bom Samaritano ajudou o homem que precisava de ajuda. Uma vez que o Samaritano podia ter agido em função do seu próprio interesse, para que fosse reconhecido pela sua boa ação, ou simplesmente porque se comoveu.
O que Kant quer dizer é que não podemos fazer depender a moral de factores que não controlamos, como as consequências da nossa ação, porque são imprevisíveis na sua totalidade, e os sentimentos, mesmo que bons, porque são incontroláveis por natureza. Quando agimos em função das consequências que pensamos vir a gerar, diz-se que agimos segundo um imperativo hipotético. Isto é, de acordo com um princípio condicional: " Se não queres ir para a prisão, não deves roubar". Quando, por sua vez, agimos em de acordo com os sentimentos, que variam de pessoa para pessoa, ficamos sem saber se todos agiriam do mesmo modo nas mesmas circunstâncias. O contrário, portanto, daquilo que Kant propõe: uma ação moral realizada por dever, por respeito pela lei moral independentemente das consequências e daquilo que possa, ou não, comover-nos. O mesmo é dizer segundo um imperativo categórico fundado exclusivamente na razão, de modo a poder ser universalizado.
Como já terás percebido, um imperativo, ou máxima, é o pensamento que está por detrás da acção, o princípio que a inspira. Quando não volto costas ao perigo, por exemplo, podemos afirmar que estou a agir segundo a máxima "Sê corajoso!". A diferença entre os imperativos hipotéticos e os categóricos é que os segundos se apresentam como um dever absoluto, isto é, que devemos pôr em prática independentemente das consequências e em todas as circunstâncias. Para utilizarmos o mesmo exemplo: devo ser corajoso porque é isso que eu devo fazer e não porque isso me pode trazer este ou aquele benefício. E é isto que Kant pretende para o imperativo moral, que seja categórico, que valha por si mesmo e de igual modo para todos. O mesmo é dizer, um princípio absolutamente racional.
O imperativo categórico, exatamente pelas razões expostas, é: "Age de tal modo que possas converter a máxima da tua ação numa lei universal". Como podes verificar, não é um imperativo que nos manda agir deste ou daquele modo, como acontece no cristianismo, além de que não faz depender a ação do resultado esperado. Trata-se de uma intenção pura e absolutamente fundada na razão, o que transforma a moral Kantiana numa moral formal. Isto é, em vez de nos dar indicações precisas, para esta ou aquela situação específicas, dá-nos uma fórmula, uma forma de raciocinar que devemos aplicar sempre que se trata de agir moralmente. Ficando deste modo garantido que a ação moral não depende dos sentimentos de cada um, mas de uma vontade racional. E que vontade é essa? A vontade de agir de tal modo que todos possam agir da mesma maneira em circunstâncias semelhantes. Se, por exemplo, alguém agir segundo a máxima "Sê um parasita, vive à custa das outras pessoas", não estará a agir moralmente, uma vez que a máxima não pode ser seguida por todos - se todos fôssemos parasitas não restaria ninguém para ser parasitado". Uma fórmula a que se atribui o nome de Princípio da Universalizabilidade. No fundo, uma versão formal da regra de ouro do cristianismo, também ela universalizável: "Não faças aos outros o que não desejas para ti".  Um princípio um pouco vago e abstrato, é verdade, mas talvez por isso Kant tenha enunciado uma segunda versão: "Trata os outros como fins, nunca como meios". Ou seja, devemos respeitar cada um na sua humanidade, como um fim em si mesmo, e nunca como trampolim para atingir outros objetivos. Devemos, por exemplo, respeitar os outros porque é esse o nosso dever, e não porque ao respeitar o outro vou receber em troca a sua simpatia.
Em suma, Kant é um verdadeiro iluminista. Rompe com as morais tradicionais, que se confundem com uma série de mandamentos preescritos por uma autoridade exterior, como acontece com o cristianismo, daí ser uma ética material. Para criar uma moral única e exclusivamente fundada na razão, sem receitas prévias, obrigando-nos a pensar a cada momento de determinada forma, daí ser uma ética formal, e em nome de todos. Numa palavra, universal.




segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

. Ética 1: como agir corretamente?



É difícil escrever o que quer que seja após uma aula tão clara como aquela a que acabas de assistir. Ainda assim, uma vez que temos que prosseguir com as nossas, isolemos algumas ideias:
1. Ainda que a atitude distante e reflexiva do filósofo rompa com a atitude do homem vulgar, submerso nos problemas do dia a dia que convém resolver a cada momento, a Filosofia acaba por nos aproximar da vida, uma vez que é ela o verdadeiro motivo da reflexão.
2. Viver é estar obrigado a tomar decisões. É isso, aliás, que nos distingue dos animais. As leoas caçam sempre o mesmo e da mesma maneira para alimentar as suas crias, é assim, não há nada a fazer, é a sua natureza. Nós, seres humanos, podemos decidir entre caçar e não caçar. O mesmo em relação ao modo como nos alimentamos, podemos comer moderadamente ou de modo irracional, de tudo ou tornarmo-nos vegetarianos. Há até quem faça greve de fome em nome de valores que consideram fundamentais.
3. Decidir pode ser uma tarefa difícil e às vezes até pode tornar-se trágico. Sobretudo quando somos confrontados com um dilema em que ficamos sem saber como fundamentar a nossa decisão.
4. Em termos gerais há duas maneiras de fundamentar as nossas decisões, que às vezes entram em conflito. Podemos fundamentar as nossas decisões em princípios pré-estabelecidos, numa ideia de dever que inspira as nossas decisões independentemente dos seus resultados. Mas também podemos decidir em função das consequências que prevemos seguirem-se à nossa ação.
5. Às teorias que defendem que devemos agir bem independentemente das consequências da nossa ação, isto é, que agir bem é seguir aquilo que é considerado uma intenção boa, atribui-se o nome de éticas deontológicas ou intencionalistas. Àquelas que defendem que as nossas ações devem resultar de um cálculo que dá mais importâncias às consequências do que a uma qualquer noção apriori de dever, dá-se o nome de éticas consequencialistas.
6. Os melhores exemplos de uma ética deontológica ou intencionalista são o cristianismo e a moral de Kant, um filósofo que já conheces. O cristianismo porque se traduz numa série de mandamentos que os cristãos deverão pôr em prática. Kant, embora isso não se traduza numa tábua de prescrições, porque está convencido de que nós, seres humanos, devemos cumprir incondicionalmente o nosse dever, o mesmo é dizer agir segundo uma vontade boa independentemente das circunstâncias. Como é que isso se processa é o que veremos nas próximas aulas.
7. Os melhores exemplos de uma ética consequencialista são as propostas de Jeremy Bentham e Stuar Mill, ambos convencidos de que devemos avaliar cada situação em função da sua especificidade, calculando as consequências da nossa ação, independentemente de qualquer mandamento ou receita previamente traçados cujo formalismo poderá impedir-nos de agir.

. Bem e mal: os valores éticos


Como agir perante tamanha diversidade de opiniões? Como posso saber se a minha ação foi correta? O que é que devo fazer? E que quero dizer com isso? O que é o dever? Em que se baseia? Eis algumas questões que por certo já colocaste e que têm inquietado os filósofos ao longo dos séculos. 
Não é fácil responder a estas questões. São várias as razões que nos fazem hesitar, umas vezes parece-nos correto agir num sentido, outras julgamos preferível não o fazer. Nem sempre sabemos qual o melhor critério para estabelecer as fronteiras entre o bem e o mal. A disciplina em que se colocam estas questões chama-se Ética, e é isso mesmo que estudaremos de seguida. 

. O valor da felicidade: 7 bilhões de Outros

. O relativismo cultural: apresentação e críticas



Para os defensores do relativismo cultural, os valores não são nem uma questão de opinião pessoal, como defendiam os subjetivistas, nem resultam de uma constatação factual ao alcance de todos os seres humanos por igual, tal como defendiam os objetivistas. Para os defensores desta teoria, os valores correspondem ao modo como cada cultura, em épocas distintas, sugere que avaliemos os nossos atos e as situações em que nos vemos envolvidos. Ou seja, para os relativistas culturais os valores são princípios e normas de conduta que variam de cultura para cultura, sendo que cada uma está sujeita aos respetivos ritmos - aquilo que hoje é considerado correto pode no futuro deixar de o ser -. Isto significa que os juízos morais verdadeiros são aqueles que cada cultura considerar verdadeiros. Tomemos como exemplo o seguinte juízo: "A homossexualidade é uma aberração". Trata-se de um juízo verdadeiro no Irão, por exemplo, onde os homossexuais são condenados à morte, mas falso na maioria dos países onde a Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma referência fundamental.
Embora esteja de acordo com aquilo que os Antropólogos reconhecem, a saber, que pessoas de diferentes sociedades têm costumes diferentes e diferentes ideias acerca do bem e do mal, assim como de tantos os outros valores, e que essas diferenças devem ser respeitadas em nome da diversidade cultural, a verdade é que o relativismo tem as suas limitações:
1. O relativismo exclui a hipótese de qualquer entendiemnto objetivo em relação ao que devemos considerar correto e incorreto. Uma ação correta é aquela que a maioria de uma determinada sociedade considerar correto.
2. Em nome do respeito pela diferença e da reprovação da ideia de ingerência - não devemos julgar o que passa nas outras culturas porque os nossos valores são diferentes -, o relativismo acaba por tolerar verdadeiras barbáries.
3. Os relativistas são vagos em relação ao que devemos entender por sociedade. Numa sociedade globalizada, em que indivíduos de culturas diferentes se cruzam a cada momento, é difícil, para não dizer impossível, determinar o que cada um deve ou não fazer.

4. Os relativistas são inconsistentes, uma vez que defendem que todos os juízos morais são relativos, ao mesmo tempo que querem que acreditemos que a própria teoria relativista é absolutamente verdadeira.

. O objetivismo moral: apresentação e críticas


Tal como os subjetivistas, os objetivistas defendem que os juízos de valor têm valor de verdade, isto é, podem ser verdadeiros ou falsos. No entanto, ao contrário daqueles, entendem que a verdade e a falsidade não dependem nem de pontos de vista individuais nem de acordos coletivos, mas das condições objetivas a que os juízos se referem. Ou seja, quando afirmo "A pena de morte é cruel e desumana" faço-o porque se trata de uma pena objetivamente cruel e desumana, e não porque essa é a minha convicção ou o que a cultura em que estou inserido considera imoral. Trata-se de uma proposição verdadeira independentemente do que outros poderão pensar, objetivamente verdadeira, assim como a sua contrária - "A pena de morte não é cruel e desumana" - será um juízo objetivamente falso.
Embora resolva alguns problemas do subjetivismo, nomeadamente a ausência de consenso, a verdade é que o objetivismo deixa algumas questões em aberto. Desde logo, porque não permite reconhecer que factos e valores são coisas distintas: os que se opõem ao objetivismo defendem que nenhuma descrição factual conduz imediatamente a um juízo de valor, serão sempre necessários argumentos adicionais - não podemos determinar o que devemos fazer a partir de uma descrição científica do mundo -. Depois, porque sugere que existe uma natureza humana, isto é, que todos reconhecemos de igual modo aquilo que é correto e incorreto, independentemente das circunstâncias  e da cultura a que pertencemos. Uma ideia que não só não se verifica na prática, de acordo com o relativismo cultural que estudaremos de seguida, como acaba por negar a responsabilidade que cada um de nós tem, tal como defende Sartre que já conheces: cada um tem de escolher por si próprio os seus valores, uma vez que não existem respostas simples para as questões éticas.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

. O subjetivismo moral: apresentação e críticas


Para os subjetivistas os juízos de valor podem ser verdadeiros ou falsos. O seu valor de verdade, no entanto, não resulta da correspondência objetiva entre o que afirmo e aquilo a que a minha afirmação se refere, como nos juízos de facto, mas daquilo que eu considero ser verdadeiro. Ou seja, para o subjetivista não há valores absolutos, iguais para todos, mas relativos, dependendo das minhas crenças e convicções. O mesmo é dizer que aquilo que é verdade para mim não é necessariamente verdade para ti. Isto significa que quando um subjetivista afirma "X é bom" está a dizer "Gosto de X", e quando afirma "Gosto de X" está a dizer que a afirmação "X é um bem" é verdadeira para si. Em última análise, o subjetivista considera verdadeiro aquilo que julga ser o melhor e prefere, independentemente do que outros poderão pensar em relação ao mesmo assunto. Os valores, portanto, são os princípios em que acredita e que desejaria ver postos em prática.
Não há dúvida que o subjetivismo tem vantagens, sobretudo se pensarmos que os subjetivistas sabem o que querem e que pensam pela sua própria cabeça. De facto, a maioria nem sempre é o melhor critério. Às vezes é necessário pensar contra a corrente, como fizeram muitos ativistas por esse mundo fora em nome de princípios hoje considerados fundamentais. Nelson Mandela, Ghandi, Sakharov, e tantos outros, são um bom exemplo disso mesmo: nem sempre o que está cultural e socialmente estabelecido como bem deverá ser considerado um bem. Por outro lado, uma vez levado às últimas consequências, o subjetivismo não pode deixar de ser alvo de algumas críticas. Desde logo porque é necessário algum entendimento, sobretudo no que diz respeito às questões fundamentais. Não é desejável que deixemos questões como a eutanásia, por exemplo, ao sabor dos caprichos e convicções de cada um. Depois, de acordo com o princípio geral do subjetivismo - cada um tem a sua verdade -, porque fazer depender a verdade daquilo que gostamos se torna potencialmente muito perigoso. Imagina, por exemplo, que eu gostava de reprovar alunos. Poderei eu, em circunstância alguma, considerar isso um bem? E se eu gostasse, por razões que a consciência desconhece, de fazer mal às pessoas?
Por estas razões, são poucos os filósofos que defendem o subjetivismo moral. Entre os que manifestam essa tendência, alguns preferem adotar o emotivismo. Uma teoria segundo a qual quando afirmo "X é um bem" não estou a dizer "Gosto de X", como fazem os subjetivistas, mas apenas "Viva X", "Apoio X". Uma teoria, portanto, segundo a qual os juízos morais, longe de poderem ser considerados verdadeiros ou falso, não passam de exclamações emocionais. Uma pequena subtileza que, ainda assim, não isenta o emotivismo, também ele, de algumas críticas. Entre elas está o facto de que o emotivismo, se fosse verdadeiro, inviabilizaria qualquer discussão moral, uma vez que não passa da expressão das nossas emoções: "Abaixo!", "Viva!"...



. Juízos de facto e juízos de valor


Diz-se que emitimos um juízo quando atribuímos um predicado a um sujeito. Por exemplo, quando atribuo o predicado "ser solteiro" ao João, o sujeito do seguinte juízo: "O João é solteiro". Ou quando digo "O joão é generoso", um juízo com o mesmo sujeito a quem agora é atribuído o predicado "ser generoso".
Quando o juízo consiste em fazer uma descrição, a que a realidade se adequa ou não, dizemos que estamos perante um juízo de facto. Como no primeiro caso, uma vez que posso verificar se o João é de facto solteiro. Trata-se, portanto, de um juízo objetivo, neutro e imparcial, que se limita a fazer uma afirmação que corresponde ou não à realidade. Daí que também se diga que os juízos de facto têm valor de verdade, isto é, são verdadeiros ou falso, assim sejam ou não confirmados.
Quando, por sua vez, fazemos uma afirmação que implica uma avaliação, como acontece no segundo caso, diz-se que estamos perante um juízo de valor. Uma vez que neste caso nem todos considerarão o João uma pessoa generosa. Trata-se de uma consideração parcial e cujo rigor dependerá sempre do que considerarmos ser generoso - será que podemos considerar o João generoso se ele for multimilionário e se limitar a ajudar os elementos da sua família? -. Não podendo, portanto, ser considerado verdadeiro ou falso sem alguma discussão. Dependerá sempre da pessoa que faz a afirmação,  daí ser subjetivo, das circunstâncias em que a faz, assim como do modo como concebemos os próprios valores: princípios pessoais - o João é generoso porque a sua conduta corresponde à minha ideia de generosidade -, propriedades das coisas - o João é objetivamente generoso, independentemente do que pensarmos acerca dele -, ou princípios culturais e relativos - o João é considerado generoso na cultura x e não na cultura y -. As consequências que derivam de cada uma destas três posições, é o que analisaremos de seguida.

. Os valores e a sua relação com a ação


Os valores são princípios gerais que nos permitem classificar positiva ou negativamente pessoas, atos, situações e objetos com que nos deparamos ao longo da nossa vida. São, portanto, as ideias que nos permitem interpretar a realidade e definir os nossos comportamentos em função daquilo a que damos importância. A sua relação com a ação é tão simples quão fundamental, uma vez que são eles que nos orientam sempre que se trata de tomar uma decisão. Dito de outro modo: os valores funcionam como referências ou critérios em função dos quais julgamos e decidimos. São eles, por exemplo, que me permitem identificar uma situação injusta para que de seguida decida, ou não, lutar contra essa injustiça. Numa palavra, são os faróis da ação, indicando os caminhos a seguir e a evitar.
Do que fica dito resultam necessariamente algumas conclusões. Em primeiro lugar, fica estabelecido que todos os valores têm dois pólos: a justiça, para permanecer no mesmo exemplo, é compreendida em função do que consideramos ser uma injustiça, do mesmo modo que a beleza é avaliada em função do que consideramos ser horrível. Em segundo lugar, dando conta da multiplicidade de áreas em que a vida e a realidade se apresentam, devemos concluir pela existência de diferentes tipos de valores. A saber, os valores éticos, que me permitem disitnguir uma ação correta de uma ação incorreta; os valores estéticos, que me permitem, por exemplo, distinguir o que é belo do que não é belo; os valores religiosos, como é o caso da ideia de sagrado; os valores políticos, como a justiça e a liberdade; os económicos, como o liberalismo responsável pela crise em que vivemos... Por último, devemos concluir que os valores são hierarquizáveis. Isto é, há valores mais importantes do que outros, pelo menos que consideramos mais importantes: se, por exemplo, denunciar um amigo que traiu a sua namorada, correndo o risco de perder esse amigo, poderá significar que dou mais importância ao valor da verdade do que ao valor da amizade. A não ser que eu próprio esteja apaixonado por ela e nesse caso seja movido por outros valores. 
Se os valores são universais ou, pelo contrário, variam de pessoa para pessoa e de sociedade para sociedade, é uma questão que analisaremos numa das próximas publicações. Depois de estabelecermos a distinção entre juízos de valor e juízos de facto, o que faremos já de seguida.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

. Liberdade e responsabilidade: o exemplo de Sartre


Para lá da discussão teórica entre compatibilistas e incompatibilistas, que nos fazem tender ora para o partido da liberdade ora para o do determinismo que nos desresponsabiliza em relação aos nossos atos, está a necessidade prática de tomarmos decisões no dia a dia. Essa, de acordo com Jean Paul Sartre, um filósofo francês de que ouvirás falar nas aulas, é efetivamente a única coisa a que estamos obrigados. Temos de tomar decisões todos os dias e em relação a isso não há nada a fazer, ninguém poderá fazê-lo por nós. Serão sempre as nossas decisões.
Afirmar que as decisões são sempre nossas não significa, no entanto, que as tomemos sozinhos. Em primeiro lugar, porque somos sempre influenciados, consciente ou inconscientemente, por aqueles com quem vivemos. Depois, porque as nossas decisões correm o risco de ser tomadas como exemplo a seguir pelos outros. É assim, é a natureza da vida social, aprendemos uns com os outros. Daí que, mais uma vez com Jean Paul Sartre, liberdade e responsabilidade devam ser vistas como uma e a mesma coisa: decidir é decidir por todos.

. Michio Kazu e o livre-arbítrio

. O problema do livre-arbítrio segundo Peter van Inwagen

. Determinismo moderado


Para o determinismo moderado não há incompatibilidade entre livre-arbítrio e determinismo, as nossas ações são simultaneamente livres e determinadas. 
Para os defensores do determinismo moderado, ao contrário dos libertistas, dizer que uma ação livre não significa afirmar que essa ação não é causada. A ação livre também surge no seguimento de uma ou várias causas. Essas causas, porém, não são causas externas que não controlamos, mas causas internas, como os meus desejos e crenças, que obviamante posso controlar - uma coisa é faltar à escola porque o autocarro não passou a horas, outra é fazê-lo porque sou preguiçoso e não me interesso pelo sucesso escolar -. Isto quer dizer, agora ao contrário dos deterministas radicais, que posso ser responsabilizado pelas minhas ações, uma vez que a sua causa sou eu próprio, a minha personalidade, que é moldada em virtude das experiências que vou tendo, é certo, mas em momento nenhum a sua consequência direta e inevitável: o facto de viver rodeado de gente sem escrúpulos e responsabilidade social não faz de mim um ser igual e necessariamente irresponsável.
Embora resolva alguns dos problemas deixados em aberto pelas teorias incompatibilistas, a verdade é que também o determinismo moderado poderá ser criticado. A mais importante das críticas de que é alvo tem a ver com o facto de não distinguir claramente as ações livres das ações não livres. Por exemplo: obedeço à lei porque ela é igual para todos e não posso fazer nada em relação a isso - causa externa - , embora não seja menos verdade que lhe obedeço porque acredito nela e porque estou convencido que isso é o melhor para mim - causas internas -. 

. O libertismo


Os libertistas entendem que as nossas ações se devem às deliberações que fazemos sempre que se trata de decidir, e nunca a condições anteriores que como numa cadeia as tornam necessárias ou inevitáveis. Ou seja, para o libertismo nunca poderemos encarar as ações da mesma forma que encaramos os fenómenos naturais, uma vez que nada me obriga a fazer o que faço. Trata-se, portanto, de uma teoria que exclui completamente a ideia de determinismo do universo da ação humana. Por exemplo: é verdade que fui indelicado com o meu amigo porque o teste de Matemática me correu mal e precisava de expressar a minha frustação, mas não é menos verdade que agi assim porque quis, que nada me obrigava a descarregar no meu amigo, que fui eu quem decidiu livremente agir desse modo... podia ter ido jogar futebol, nadar ou desanuviar de qualquer outra maneira.
Por muito apelativo que pareça, o libertismo não está isento de críticas. A maior de todas está relacionada com aquilo que devemos entender por "eu". O que é queremos dizer quando afirmamos "fui eu que decidi" ou "a minha ação foi causada por mim"? De que entidade estamos a falar? De uma entidade física? De uma entidade não física? Se se trata de uma entidade física, então está sujeita às leis da natureza que regulam todos os fenómenos físicos, algo que os libertistas rejeitam. Se se trata de uma entidade não física, como explicar então que as nossas decisões tenham consequências físicas, num dado momento e lugar? Dito de outro modo: como é que uma realidade mental pode gerar consequências físicas sem a intervenção de uma realidade física como, por exemplo, o cérebro? Será que podemos distinguir mente e cérebro? Melhor: se defender que as minhas ações não são causadas por nada, nem mesmo pelos os meus estados internos - crenças, desejos, sentimentos... -, não terei que reconhecer que libertismo e indeterminismo - teoria segundo a qual as nossas ações são fruto do acaso - são uma e a mesma coisa?

. Determinismo radical


De uma forma abreviada, o determinismo radical defende que não há ações livres. Segundo esta teoria, as nossas ações, à semelhança de todos os fenómenos naturais, surgem como consequência inevitável de causas externas que escapam ao nosso controlo. O mesmo é dizer que fazemos o que fazemos porque não existe alternativa, trata-se do resultado de uma série de condições anteriores que tornam a nossa ação um fenómeno necessário. O resultado, por exemplo, das nossas predisposições genéticas e da nossa educação, em relação às quais nada haveria a fazer. 
Trata-se de uma teoria perigosa, tal como pudeste constatar na análise do caso dos jovens Leopol e Loeb, uma vez que não permite responsabilizar ninguém pelos atos que realiza. As ações são encaradas como consequência necessária das condições que as antecedem e os agentes como vítimas dessas mesmas condições. Como se estivéssemos programados para fazer o que fazemos, simples marionetas determinadas pelo passado e pelas circunstâncias - sociais, políticas, económicas... - em que fatalmente nos encontramos. Deixando por explicar, portanto, sentimentos como a culpa e o arrependimento, da mesma forma que nos descompromete com a ideia de responsabilidade social segundo a qual devemos pensar nas consequências antes de agir.

. Liberdade e determinismo na ação: o problema do livre-arbítrio


Depois de termos analisado a complexidade da ação, os momentos que a compõem e os fatores nela intervenientes, é altura de perguntarmos se as nossas ações são realmente livres ou, pelo contrário, são determinadas por fatores que escapam à nossa vontade. Fazer esta pergunta significa colocar o problema do livre-arbítrio: será que somos livres ou a liberdade não passa de uma ilusão? Dito de outra maneira: as nossas ações são o resultado da nossa vontade livre ou determinadas?
Comecemos por esclarecer o que significam o livre-arbítrio e o determinismo. Por livre-arbítrio, ou liberdade, entende-se a capacidade de iniciar uma série de acontecimentos, que resultam da nossa decisão, sem que a isso estivéssemos obrigados. O mesmo é dizer a capacidade de fazer qualquer coisa que poderíamos não ter feito, que podíamos ter evitado. Daí que não possamos confundir livre-arbítrio com liberdade política. O primeiro, caso concluamos pela sua existência, é constitutivo do ser humano e verifica-se independentemente das circunstâncias em que nos encontramos, é algo que ninguém nos pode retirar, faz parte de nós. A segunda, pelo contrário, pode ser-nos dada ou retirada, consoante o regime político a que estivermos sujeitos, tal como foi negada a Nelson Mandela por mais de duas décadas e a muitos portugueses durante a ditadura salazarista. O determinismo, por sua vez, defende que as nossas ações são uma consequência inevitável de uma ou várias causas que as tornam necessárias. Trata-se, portanto, de uma teoria filosófica que encara a ação humana à semelhança dos fenómenos naturais, isto é, como elementos de uma cadeia causal cujo ritmo não depende da nossa vontade.
Em relação à resposta ao problema, devemos considerar dois tipos de solução: a compatibilista e a incompatibilista. A solução compatibilista, como o próprio nome indica, considera o livre-arbítrio e o determinismo compatíveis, isto é, verdadeiros simultaneamente, princípios conjugáveis que não se anulam nem entram em contradição. A solução incompatibilista vai no sentido contrário, uma vez que considera os princípios em questão incompatíveis e reciprocamente exclusivos: se há liberdade não há determinismo, se as ações são determinadas então não há livre-arbítrio. De seguida, terás oportunidade de estudar duas teorias incompatibilistas - o determinismo radical e o libertismo - e uma compatibilista - o determinismo moderado -. Analisa-as atentamente e decide em qual delas te revês.