domingo, 16 de março de 2014

. Ética aplicada: o caso da eutanásia


Identificação do problema
Imagina que conheces alguém em grande sofrimento e sem perspectivas de viver uma vida que valha a pena. Será moralmente aceitável ajudá-lo a morrer? No caso de uma pessoa muito velha ou um doente crónico, por exemplo, será moralmente aceitável desligar a máquina de apoio à vida ou administrar uma droga letal? Numa palavra, até que ponto podemos falar de morte misericordiosa? Como mostrarei de seguida, esta é uma questão que sugere respostas distintas consoante a teoria ética que adoptarmos. Antes disso, porém, é necessário estabelecer a distinção entre diferentes tipos de eutanásia:
- falamos em eutanásia voluntária quando o paciente deseja morrer e expressa o seu desejo, trata-se de uma espécie de suicídio assistido já praticado legalmente na Suiça e na Holanda;
- a eutanásia involuntária dá-se quando o paciente não deseja morrer e o seu desejo é ignorado. Em muitos casos equivale a assassínio;
- a eutanásia não voluntária corresponde à situação em que o paciente não está consciente ou em condições de exprimir o seu desejo;

Discussão do problema: a eutanásia voluntária
Um cristão, cuja ética se baseia na ideia de dever, terá muitas dúvidas em relação à justificação moral da eutanásia voluntária, uma vez que contraria o mandamento “Não matarás!”. No entanto, poderá existir um certo conflito entre este mandamento e o do Novo Testamento que manda amar o próximo: ajudar a morrer uma pessoa que pede ajuda nesse sentido pode ser visto como uma forma de amor pelo próximo, daí chamar-se a este tipo de eutanásia “morte misericordiosa”.
Um Kantiano, isto é, alguém que considera a humanidade como um fim em si mesmo e que se recusa a tratar as pessoas como um meio, poderá viver um conflito semelhante. Por um lado, tem o dever de nunca matar, uma vez que estaria a tratar a pessoa como um meio para obter um fim, neste caso o fim do seu sofrimento. Por outro, é possível encarar a morte misericordiosa como um fim em si mesmo, se for isso que o doente quiser e precisar de ajuda.
Um utilitarista, isto é, alguém que decide em função das consequências da acção, e não em função de deveres pré-estabelecidos, pensaria de forma muito diferente. A acção correcta será aquela que causar a maior felicidade ao maior número, pelo menos mais felicidade do que infelicidade. Se se verificar que ajudando alguém a morrer, sobretudo se o prazo de vida não for longo, se termina com o seu sofrimento, além do da família, a eutanásia tem justificação: não trará felicidade, mas traz menos infelicidade.

 Efeitos secundários da eutanásia
A morte do paciente por eutanásia pode implicar a violação da lei – pense-se nos casos de Ramon Sampedro em Espanha e das mais recentes recusas nos tribunais franceses -, de forma que a pessoa que ajudar o paciente a morrer corre o risco de ser condenado. Colocando-se outra questão ética: até que ponto poderá a violação da lei ser moralmente aceite? Casos como os de Aristides Sousa Mendes, entre outros herois anónimos que não hesitaram em desafiar a autoridade para proteger seres humanos indefesos, são exemplo disso mesmo.
Outro efeito secundário da prática da eutanásia é a possibilidade de facilitar a vida aos médicos sem escrúpulos que matam pacientes fingindo que estão a cumprir o seu desejo. Ou seja, a legalização da eutanásia voluntária poderá facilitar a vida a quem quiser implantar uma política de eutanásia involuntária.

Esboço de uma reflexão crítica
A questão da eutanásia, como a maioria das questões éticas, não é fácil. É verdade que podemos socorrer-nos desta ou daquela teoria para justificar as nossas decisões. Porém, e em última análise, a decisão dependerá sempre de nós, do nosso livre arbítrio.
A questão ética poderá ser atenuada se a lei de cada país enquadrar a prática, que afinal é muito antiga e continuará a ser silenciosamente praticada. Casos como os da Suiça e da Holanda poderão constituir uma boa referência para os legisladores de todo o mundo, enquadrando o fenómeno e estabelecendo as fronteiras entre o que é um suicídio assistido, eutanásia voluntária, e um potencial homicídio, no caso de confundirmos aquela com a eutanásia involuntária.
Pelas razões anteriores, e não só, justificam-se todas as discussões em torno do problema, sendo que mais tarde ou mais cedo seremos politicamente confrontados com a questão, quem sabe com um referendo, onde seremos chamados a escolher entre a moralidade cega e o direito a uma morte com dignidade, tal como dizia Ramon Sampedro.

domingo, 9 de março de 2014

. Ética 5: críticas ao utilitarismo


Embora pareça uma teoria apelativa, a verdade é que não é fácil pôr em prática os princípios do utilitarismo.
A primeira dificuldade que se levanta está relacionada com a impossibilidade de medirmos a felicidade. Pessoas diferentes sentem-se felizes por razões diferentes, o que torna a tarefa de estabelecer uma ideia de felicidade comum particularmente difícil. Como comparar, por exemplo, a felicidade experimentada por um adepto de futebol quando a sua equipa marca um golo fabuloso e a de um jovem casal que acaba de ter o seu primeiro filho? E a felicidade experimentada nestes dois casos com o prazer que sentimos quando comemos o nosso prato favorito? Será que estamos a falar da mesma felicidade? Enfim, como calcular a felicidade?
Em relação a esta questão, Stuart Mill propôs que se distinguissem dois tipos de prazer, os elevados e os mais baixos. Os primeiros seriam os prazeres intelectuais. A felicidade sentida, por exemplo, quando lemos um livro de que gostamos muito ou ouvimos a nossa música favorita. Os segundos seriam os prazeres físicos, mais básicos, como acontece quando comemos um gelado ou bebemos um sumo deliciosos numa tarde quente de verão. Uma divisão um pouco elitista, uma vez que resulta das suas preferências particulares e dos interesses da sua classe social. Ou seja, a dificuldade permanece, não é fácil comparar a felicidade experimentada por pessoas diferentes em circunstâncias distintas.
Outra objeção ao utilitarismo tem a ver com o facto de este permitir justificar muitas ações habitualmente consideradas imorais. A pena de morte, por exemplo. Há países que mantêm esta pena por estarem convencidos de que desta maneira vão diminuir a taxa de crimes violentos, isto é, que o bem comum resultante da sua aplicação é muito maior do que o sofrimento particular do condenado e dos seus familiares.
Para lá das críticas anteriores, o utilitarismo parece justificar algumas ações verdadeiramente absurdas. Uma vez que o princípio é a felicidade global, somos levados a crer que seria preferível viver num estado de felicidade artificial - se um cientista inventasse uma substância que nos mantém constantemente felizes - do que num mundo em que somos obrigados a ponderar e a tomar as nossas decisões.
Outro caso difícil tem a ver com a importância que damos à nossa palavra. Para Kant, devemos manter as nossas promessas independentemente das consequências, trata-se de um princípio categórico, é uma questão de integridade e dignidade. Para um utilitarista, por sua vez, manter a palavra é um bem relativo. Por exemplo, um utilitarista não desconsideraria a possibilidade de não pagar uma dívida, se o credor se tivesse esquecido e fosse muito rico. Neste caso, a felicidade do devedor seria maior do que a infelicidade do credor, sobretudo porque o dinheiro não lhe faria muita falta.
Por último, e talvez seja esta a crítica mais importante, é muito difícil prever as verdadeiras consequências das nossas ações. Um pai que bate no filho quando este comete uma asneira poderá fazê-lo porque está convencido de que assim evitará situações potencialmente perigosas. A verdade, porém, é que nunca poderá ter a certeza se os benefícios imediatos da sua ação serão maiores do que a possibilidade de estar a interferir a médio e longo prazo no desenvolvimento emocional da criança. Traumatizando-a, por exemplo.


quarta-feira, 5 de março de 2014

. Ética 4: o utilitarismo de Stuart Mill


Ao contrário de Kant, Stuart Mill (1806-1873) é consequencialista. Isto significa que para este filósofo as ações são avaliadas em função das consequências que geram. Dito de outro modo: podemos considerar uma ação boa porque o resultado dessa ação é desejável e não porque se baseia numa intenção boa. Por exemplo, Kant afirmaria que mentir é sempre errado, em qualquer circunstância e independentemente das consequências, uma vez que a mentira se opõe ao nosso dever de dizer sempre a verdade. Stuart Mill, por sua vez, entende que alguns fins justificam os meios, ou seja, mentir não é uma ação errada em si mesma, sobretudo se com isso evitarmos um mal maior.
A teoria de Stuart Mill, inspirada em Jeremy Bentham (1748-1832), tem o nome de utilitarismo e baseia-se no pressuposto de que o grande objetivo da ação humana é a felicidade. Segundo esta perspetiva, uma ação boa é aquela que gerar a maior felicidade possível para o maior número de pessoas possível. Ou, pelo menos, mais felicidade do que infelicidade. Este princípio ficou conhecido como o princípio da maior felicidade possível ou princípio da utilidade. Isto quer dizer que para um utilitarista a boa ação pode ser calculada examinando as consequências prováveis dos vários cursos possíveis de ação. O que nem sempre é fácil, como veremos de seguida.